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quarta-feira, 16 de junho de 2010

Canudos: Notas sobre uma guerra desumana e cruel (*) José Romero Araújo Cardoso


O estopim que acendeu a guerra de Canudos foi mesquinho e abominável, revelando personalidade doentia e escandalosa de quem perpetrou calúnia hedionda contra os membros da comunidade mística fundada no adusto sertão baiano, cujas características quanto às conquistas humanas impressionam devido ao grau de organização, tendo beneficiado a todos que lá se acomodaram, fugindo da fúria do latifúndio e da prepotência dos senhores de baraço e cutelo que vicejavam de forma proeminente no sertão nordestino daquela época. Arlindo Leone, juiz de direito de Juazeiro (BA), forjou mentira de que os conselheiristas estavam prestes a invadir a cidade, em razão que não havia sido entregue lote de madeira, comprado e pago regiamente, o qual estava destinado para o término da construção da igreja nova. Havia antiga rixa entre o magistrado e o líder carismático-religioso de Canudos. Conselheiro, certa vez, tinha passado reprimenda no juiz devido vida pregressa levada por Arlindo Leone, sobretudo com relação ao adultério.

Colocando a população, as autoridades e a imprensa em polvorosa, Leone criou as condições necessárias para a futura destruição do arraial que mudou a vida de muitos excluídos nordestinos, pois abrigava gente de várias procedências, ávida por melhores condições de sobrevivência material e espiritual em um sertão extremamente marcado pela opressão. A igreja católica, que também não via o Belo Monte com bons olhos, cerrou fileiras nas denúncias contra o “reduto fanático”. Anteriormente, relatório elaborado pelo Frei Monte Marciano, altamente desagradável e cheio de adjetivos caluniosos, profuso na quantidade de violência verbal inaudita contra os habitantes do arraial conselheirista, alimentou ainda mais a raiva nutrida pelo clero contra Antônio Conselheiro e seus seguidores.

A expedição comandada pelo Tenente Pires Ferreira foi ao encontro do povo de Antônio Conselheiro, atacando e sendo rechaçada violentamente com as toscas armas carregadas pelos sertanejos, não obstante o número de mortos ter sido maior entre os seguidores do Bom Jesus Conselheiro. À frente, antes do ataque covarde, devoto carregava a bandeira do Divino, sinal de que vinham em paz, apenas querendo exigir o que lhes era de direito. Os principais jornais do país começaram a estampar matérias cada vez mais estapafúrdias contra os conselheiristas. Logo foi organizada outra expedição, dessa vez mais forte, comandada pelo Major Febrônio de Brito. Nova derrota militar foi conquistada pelos conselheiristas, sendo que esta resultou na aquisição de certa quantidade de armas e munição para a luta dos agora guerrilheiros do Belo Monte.

Mentiras, calúnias e difamações começaram a ser exponencializadas contra o arraial, agora considerado mais que maldito, pois entre as muitas inverdades divulgadas estava referente que a luta em Canudos estava ligada à tentativa de restituição do regime monárquico. Apenas uma voz respeitada se levantou contra a histeria coletiva que se formava em torno do caso Canudos. Através de espaço que lhe era reservado na imprensa, Machado de Assis pediu, com profundo humanismo, para que deixassem em paz a gente de Antônio Conselheiro. Por outro lado, artigo inflamado, disfarçado em profunda cientificidade, sobretudo com relação ao quadro natural, era escrito por Euclides da Cunha, intitulado “Nossa Vendéia”.

Indubitavelmente, o artigo de Euclides da Cunha ajudou a inflamar os ânimos exaltados, pois Vendéia foi o último reduto de defesa da monarquia francesa, tendo resistido por anos ao assédio militar que representava a nova ordem na França pós-revolucionária. Euclides da Cunha foi um dos catalisadores da ênfase à necessidade da destruição de Canudos, não obstante depois, no ano de 1902, ter lançado livro-denúncia, por título “Os Sertões: Campanha de Canudos”, o qual peca em pontos essenciais, como o antropológico, tendo lançado difamações e conceitos racistas e maledicentes contra os sertanejos, mas que muito serviu para bradar contra o massacre, bem como para o reconhecimento científico do quadro natural do semiárido nordestino. Havia pouco que tinha terminado o violento governo de Floriano Peixoto. Entre os ícones da república da espada estava Coronel carniceiro chamado Moreira César, o monstro que havia sufocado as lutas no sul do país com extrema crueldade. A capital catarinense, que antes se chamava Desterro, teve o topônimo mudado para Florianópolis.

A terceira expedição foi confiada a Moreira César. De forma arrogante, o corta-cabeças, como ficou conhecido o famigerado oficial, chegou com sua tropa nas imediações de Canudos, destilando desdém contra os conselheiristas. Logo a guarda católica mostrou que não era de brincadeira, pois comandados por Pajeú, infringiram vergonhosa derrota à expedição que havia propalado com alarde a fácil destruição de Canudos, de forma imediata e fulminante, tendo divulgado na imprensa que não haveria chance alguma para àqueles “lombrosianos” sertanejos, incapazes de fomentar qualquer estratégia de guerra Era essa a errônea e distorcida concepção do homem que era tratado como estrela pelos militares aliados de Floriano Peixoto. Moreira César subestimou os conselheiristas, pois pensava encontrar raquíticos e desnutridos sertanejos, estereotipados imemorialmente pelos brasileiros da porção mais abastada do país. Na verdade, o povo do Belo Monte era forte e saudável devido às conquistas alcançadas com o trabalho desenvolvido na “terra prometida” estabelecida às margens do rio Vaza-Barris.

Erraram grosseiramente, pois Pajeú e a guarda católica fustigaram a expedição Moreira César de forma impressionante, matando os principais oficiais do Exército Brasileiro e humilhando a república recém-instaurada. A proporção gigantesca assumida pela guerra contra Canudos se deve em parte ao verdadeiro arsenal que a expedição Moreira César deixou na fuga do que restou da coluna arrogante comandada pelo animal de estimação da república da espada. Não obstante o governo brasileiro quando da guerra de Canudos ser civil, o poder dos militares era incontestável, pois logo houve pressão de todos os quadrantes para que fosse organizada poderosa coluna militar intuindo destruir Canudos e vingar o massacre da expedição Moreira César. A opinião da sociedade era quase unânime contra Canudos, recrudescendo os brados de revolta contra a heróica “Tróia Sertaneja”, sendo que um dos cavalos-de-pau foi poderoso canhão withworth 32, trazido com esforço invulgar com o objetivo de causar as mais impressionantes baixas na população do Belo Monte.

A quarta expedição, comandada pelo General Arthur Oscar, levou desvantagem nítida quando dos combates, razão pela qual foi engrossada por uma quinta expedição vinda de todos os Estados brasileiros. A chegada da participação militar paraense em Canudos demonstrou o grau de decisão do povo do Conselheiro. O beato já tinha morrido, mas, incansáveis, os guerrilheiros continuavam impávidos defendendo o território no qual encontraram sonhada felicidade. O comando militar paraense não entendeu a razão por que o General Dantas Barreto se encontrava em posição de espera. Foi ordenado fulminante ataque aos “guerreiros do norte” em direção ao arraial bombardeado e dilacerado. Foram recebidos com verdadeira saraivada de balas, pois os conselheiristas, os paraenses não sabiam disso, tinham aberto trincheiras por baixo das casas e de lá se comunicavam e desferiam ataques violentos contra quem ousasse adentrar os domínios sagrados fundados por Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha imortalizou os momentos finais de Canudos, afirmando que não houve rendição, exemplo único em toda história, quando seus últimos defensores foram mortos pela fúria de cinco mil soldados. Canudos é exemplo de uma sociedade alternativa de grande importância para a história das lutas do povo brasileiro, pois o maior de todos os méritos do Conselheiro foi ter sido responsável pela ênfase à significativa melhoria da qualidade de vida de parcela de um povo que há tempos imemoriais vem sendo tratado pelos intransigentes donos do poder como animais e como sub-raça de quinta, sexta ou sétima categorias.

(*) José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo (UFPB). Professor-adjunto do Departamento de Geografia (DGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em Organização de Arquivos (III CEOARQ – UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA-UERN). Contatos: Endereço Residencial: Rua Raimundo Guilherme, 117 – Quadra 34 – Lote 32 – Conjunto Vingt Rosado – Mossoró – RN- CEP: 59.626-630. E-mail: romero.cardoso@gmail.com.

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